quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Avatar FiliPêra

Mr. Nobody

 

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Não há vida sem você…

Olhando de uma ótica simplista e unicamente comparativa, Mr. Nobody é uma mistura praticamente perfeita de O Curioso Caso de Benjamin Button e A Fonte da Vida. Acrescente a direção de um gênio do naipe de Paul Thomas Anderson no auge de Magnolia e acho que chegamos ao resultado final. Mas o filme é bem mais do que isso. Usa um argumento relativamente simples para construir um roteiro que dialoga sobre dúvidas humanas, um pouco de Psicanálise, Física Quântica, Relatividade, Astrofísica e a mais essencial característica da espécie: a capacidade de Amar. Pode parecer chato, pretensioso e por demais intrincado, mas apesar da cuidadosa complexidade, o filme flui com perfeição… manipulador, ambíguo e carregado de sentimentos que se interpõe muito acima da capa científica dele. Dessa forma, é completamente possível que alguns só se atenham aos momentos inerentes às características dele próprio: os depressivos vão identificar um filme fortemente depressivo e cheio de tragédias, os aventureiros enxergarão um mundo de possibilidades a serem alcançadas, e os românticos enxergarão a melhor narrativa sobre o amor hindu - o kāma - que o cinema fez em muito tempo, amor que foge de regras temporais ou leis físicas, ou mesmo se coloca acima da vida, ainda que carregue elementos humanos como a sensualidade - o mesmo pode ser dito sobre o amor de sete degraus proposto por Platão em sua obra O Banquete, que é definido como "uma loucura que é dádiva divina, fonte das principais bênçãos concedidas ao homem".

Aliás, tempo e amor são os dois principais elementos que sustentam Mr. Nobody, ainda que ele seja cercado de inúmeros outros artifícios interessantes e camadas narrativas que podem parecer assustadores logo de cara. Nemo Nobody é o último humano mortal do ano de 2092. Um velho com 120 anos que não lembra de nada e não tem certeza de suas próprias lembranças. Sexo, morte, doenças e outras fronteiras bastante conhecidas da existência foram suprimidas. Mas essa aparente sociedade utópica é apenas pano de fundo para a projeção da vida de Nemo, a verdadeira estrela do filme. A narrativa é caótica como a estrutura da nossa mente, uma torrente de pensamentos que se cruzam, avançam, retornam e se adiantam no tempo de forma pouco convencional ou linear, misturando-se a fantasias e possibilidades de realidade. O resultado é habilmente dúbio, dicotômico até, questionador, um cutucão que aponta para os rumos da nossa própria vida.

A essência do filme é basicamente sua narrativa, calcada na vontade de ir a fundo na(s)  linha(s) existenciais de Nemo e nas amplas possibilidades de quebrar regras e convenções cinematográficas. Sabe Efeito Borboleta? Esquece, esse aqui é o verdadeiro filme sobre o tema, quando mistura os efeitos de simples mudanças não-intencionais no ambiente e não simplesmente inserções conscientes de personagens sobre ações de outros personagens. Tal grandiosidade e sutileza é demonstrada na cena em que uma borboleta bate as asas num campo e impulsiona uma folha que voa por quilômetros até repousar numa calçada, no exato instante em que um jovem passa, escorrega, é auxiliado por uma mulher que futuramente se casa com ele, engravida e dá a luz a Nemo. Ou quando essa mesma folha faz Nemo se acidentar de moto e entrar num profundo coma. Sem a folha, Nemo jamais existiria, ou ficaria plantado num hospital.

As memórias de Nemo são recortes, fragmentos, idas e vindas temporais que lutam por se conectar, às vezes do modo mais bizarro e detalhado possível. Tudo se assemelha a andar em círculos, não avança, e ainda torna o real indistinguível das fantasias e sonhos, ou das possibilidades de realidade ou possibilidades de sonhos, criando camadas ambiciosamente profundas. Nemo pode ser um guri onisciente no céu esperando “nascer”, ou simplesmente um adolescente problemático que consegue prever o futuro à sua maneira. Ou um espermatozóide que jamais fecundou. Ficar com o pai ou correr atrás do trem em que a mãe se vai? Esse é o tipo de decisão com a qual ele se depara, e o filme essencialmente faz questão de analisar todas essas escolhas, não se preocupando em dizer qual seria a verdadeira ou falsa. E ainda diz no fim um Todas são verdadeiras, agregando todas essas realidades paralelas que só existiram na mente dele como igualmente reais e corretas.

 

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Mas existe um ponto central, um fio condutor que parece delinear e carregar de vida toda a caconarrativa de lembranças de Nemo: seu forte amor por Anna. Ele se recorda dos tempos de infância e alimenta casamentos com três garotas que não o fazem feliz ou que ele tão pouco conhece. A não ser Anna, a principal dessas garotas. É o seu sentimento por ela que o faz distinguir qualquer possibilidade de existir realidade nas suas memórias, é o seu intenso amor por ela que o faz atravessar o Espaço-Tempo. Não há vida sem você, repete ele ao longo de todo o filme, nos lembrando o amargurado Tom/Tommy/Thomas, de A Fonte da Vida, que continuamente busca salvar Isabel/Izzy..

Nesse momento, é possível que você esteja imaginando que a narrativa quebrada se torne a estrela do filme a tal ponto de soterrar a significância das cenas de forma individual. Felizmente, tal coisa passa longe de acontecer. Jaco van Dormael, o exímio diretor e roteirista do filme, consegue uma manipulação exemplar do tempo e dos sentimentos do espectador. Quando quer, ele faz o tempo passar violentamente rápido, com recortes e um rápido espiral de situações imaginativas. Quando quer o inverso, simplesmente foca cada detalhe dos repetidos encontros e desencontros de Nemo e Anna, esticando o tempo de forma quase divina - e marejando seus olhos, também. E é exatamente essa dualidade qualitativa - as cenas individualmente e o conjunto narrativo completo - que torna o filme tão único. As cenas de amor inocente com Anna, o pai com Alzheimer precisando da ajuda de Nemo para tomar banho, as separações, tudo é significativo e tocante, causando imediata identificação por parte de qualquer um com um mínimo de vivência. O filme consegue ser técnico e poético ao mesmo tempo; grandioso e individualista.

Apesar de não ser uma superprodução, tudo está no máximo aqui. Os efeitos podem não ser o supra-sumo técnico, mas são elegantes e não comprometem em momento algum - e são exigidos a todo minuto. A fotografia é carregada de excelência, abusando de closes extremos, elementos desfocados, câmera lenta, e movimentos ousados, que unem uma cena a outra de forma extremamente natural. Os atores, apesar de estarem inseridos num plano onde não têm muito espaço para brilhar, atuam com extrema qualidade, destacando-se Jared Leto, Diane Kruger, Sarah Polley e todo o séquito de atores mirins.

A poesia por trás das cenas é outro ponto impressionante. Mesmo submergindo a narrativa em realidades realmente estranhas a todo momento - como uma em que todos vestem xadrez - o diretor e roteirista Jaco van Dormael consegue imprimir um clima humano em todas elas. E não se perder em nenhum momento, mesmo que o filme seja longo, com duas horas e vinte. É como ver na tela o inconsciente se comunicando com os consciente de Nemo, filtrando sinais e influenciando decisões. E ainda que no final ele tente delinear alguma realidade-realmente-real no meio de toda as divagações mentais de Nemo, a ambiguidade continua lá, poética, mesmo que sob uma mensagem oculta que mistura universalidade e individualidade. E ainda no fim, o diretor encontra tempo pra fazer uma importante inserção da sua visão sobre a vida após a morte, fundindo conceitos científicos com possibilidades místicas.

 

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Freud e sua psicanálise definiu o amor simplesmente como a projeção de nossas vontades sobre outra pessoa, chegando ao ponto de existir a possibilidade de prisão e escravização a ele, graças aos nossos próprios defeitos. Os neurologistas definem o amor simplesmente como uma série de reações cerebrais a química de certos hormônios como a endorfina. Os darwinistas como uma necessidade inconsciente que temos de nos perpetuar, escolhendo parceiros férteis para manter a existência humana intacta. Mas sabemos que o Amor é bem mais do que isso, é indefinível - ou simplesmente a união desses conceitos científicos limitados a uma mística psíquica. A tábua da vida de Nemo indica isso, um apego, um sentimento forte o bastante para superar o tempo, as escolhas, as possibilidades de escolha, o Caos, e a todos os mecanismos existenciais. Paralelo a isso, Mr. Nobody nos faz refletir sobre os rumos da nossa vida, dos caminhos que nossas decisões nos levam, sobre a impossibilidade de retornar, sobre conhecimento. É um filme carregado de metáforas ricas e resistentes às épocas. É o típico filme que te deixa feliz, mas igualmente encabulado, reflexivo, não querendo ver outros filmes tão cedo.

Aproveite, não é todo o dia que assistimos uma existencial poesia filmada!

 

Mr. Nobody (Canadá e Bélgica, 2009)

Diretor: Jaco Van Dormael

Duração: 130 min

Nota: 9,5

14 Comentaram...

Anônimo disse...

Esse filme assisti faz 1 mes...acho que mais. Realmente muito bom!

Meio louco e parece confuso, mas realmente extraordinário.

Acho que a nota 9,5 revela bem a qualidade do filme!

Não perca a chance de assistir esse filme!

Francine disse...

Um roteiro que dialoga sobre as dúvidas humanas, um pouco de Psicanálise, Física Quântica, Relatividade e Astrofísica realmente pode parecer pretensioso, mas diante de tanta mesmice e medo de criar algo realmente interessante, esse tipo de pretensão é uma luz no fim do túnel.

Só tenha cuidado com ao descrever algumas cenas do filme. Alguns ranhetas de plantão (incluindo eu) podem considerar alguns parágrafos ali em cima com cara de "spoiler".

Claudio disse...

não vão fazer análise do 500 days with summer?

Anônimo disse...

Boa FiliPêra, Eu vi o filme em fevereiro desse ano, e já revi umas quatro/cinco vezes. Se tornou meu filme preferido.

Pena que pouca gente conhece, parte do motivo pela narrativa um pouco confusa. Muitos desistem do filme logo nos primeiros minutos.

Outro ponto forte e que você não destacou é a trilha sonora, em sua maioria instrumental. É simplesmente impecável e muito tocante.

À espera de um filme tão bom quanto.

FiliPêra disse...

@Claudio: a resenha de "(500) Dias com Ela" está aqui http://www.nerdssomosnozes.com/2009/10/500-days-of-summer.html

@KuchikiSaLL
Realmente, quando fui ver tinha deixado passar a trilha mesmo, que é fantástica e inclui até "Where's My Mind", uma das músicas mais emblemáticas de trilha sonora!

RaphaGM disse...

flw cara , pensei q ia demorar mais pra sair essa resenha, entendi melhor algumas coisas sobre o filme , vlw mesmo , brigadao.

Alexandre disse...

Assisti esse filme logo que saiu, totalmente desconhecido.
Quando comentava com alguém me olham com aquela cara de "cê bebeu?", mas beleza!
Algumas obras devemos guardar para nós mesmos.
Esse filme foi um verdadeiro refresco a uma "alma" cansada da mesmice e da opressão do dia a dia.
É o tipo de filme que te leva pro céu, e logo em cima te traz pra terra numa velocidade absurda, deixando aquela vontade louca de mais.
Te faz pensar e querer mais.
Simplesmente arrebatador.

Akira Mistika disse...

Não conhecia este filme, mas parece que vou gostar, pena que não houve muita divulgação desse filme.Gosto dos artistas, são muito bons..
Qual a previsão de lançamento, irá para o cinema ou irá direto para dvd?

Anônimo disse...

Cade o Anarquia com o download, bota lá pra agente baixar...

Alan Cosme disse...

Amei o filme. Adoro filmes assim. Bem surreais e que te forçam a prestar atenção. Fiz até uma resenha no meu blog, quem quiser conferir:

www.tolkienmetal.blogspot.com

Bia Bizerra disse...

Apesar de não saber qual linha da história é a verdadeira (e esse não era o intuito acredito)é o tipo de filme que te deixa feliz no final com gostinho de quero mais! São duas horas de reflexão, não esperei pelo final simplesmente me maravilhei com todos os momentos do filme. é quase perfeito!

Anônimo disse...

maravilhoso...

Anônimo disse...

Amei o filme. Totalmente reflexivo e mágico. Agradeço a resenha! Nota 10!

Stella M.

Anônimo disse...

Vou assistir, mas confesso que com medo...o "a árvore da vida" eu detestei, a hora que o cara vira árvore eu morri de rir...tem filme que quer ser cabeça demais e se perde (ou eu que não atingi a mensagem) mas como tem muitas críticas positivas vou arriscar...depois conto o que achei.

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